segunda-feira, janeiro 22, 2007

Hoje, no ambulatório do HC, vi um rapaz que se acidentou no sábado. Enquanto cortava o mato com a roçadeira elétrica, uma pá do aparelho atingiu uma pedra e a lançou contra seu olho. É claro que ele não usava proteção. Claro que a pedra o rasgou de um lado ao outro. Claro que o rapaz tem só dezoito anos e a vida toda pela frente. Não foi possível recuperar o olho e ele foi submetido a uma evisceração (vou poupá-los dos detalhes, o nome é auto-explicativo) no final de semana.
Pois hoje, enquanto o examinava num de nossos aparelhos, sua mãe se postava atrás dele segurando resignadamente o frasco de soro que estava conectado à sua veia. Eu lhe perguntava coisas sobre o seu estado nas últimas 24 horas e discutia a próxima conduta com o residente. Apesar de eu falar discretamente e escolher bem as palavras para não chocá-los, não parecia que mãe ou filho estavam ligando muito para a situação. Não me perguntavam nada e reagiam com indiferença aos meus comentários.
Pode ser que eles ainda não tenham se dado conta da extensão do que acabou de acontecer, mas também pode ser que nem venham a demonstrar qualquer tipo de pesar ou luto para nenhum de nós. Já estou na profissão há tempo suficiente para ver gente que sofre uma mutilação e dá de ombros. O pensamento inicial que me ocorre é: "Ele/ela está ainda numa fase de negação." Mas aí o tempo passa, você continua seguindo o paciente no ambulatório e então percebe que um bom tempo depois, a única pessoa que demonstra preocupação com a recuperação funcional e estética é você - o médico.
Engraçado com isso até suscita um pouco de raiva. Dá vontade de chacoalhar o paciente e gritar: "Você está percebendo o que lhe aconteceu? Não vai mexer um dedo para recuperar o que puder?"
Certa vez uma mulher - adulta, já, e dona de seu próprio negócio, um café dentro do campus, ficou sabendo durante uma consulta comigo que um de seus olhos jamais funcionara. Ela nunca havia se dado conta disso. O bocó aqui ficou chocado vicariamente com a descoberta, e pus-me a explicar a causa daquilo, imaginando a perplexidade da mulher ao receber uma notícia daquelas. Ao mesmo tempo em que eu me esforçava pra explicar todo o mecanismo da coisa, pra que ela pudesse por o assunto para descansar (não havia possibilidade de recuperação da visão), eu me policiava pra não parecer alarmista e assustá-la. A certa altura a mulher desatou a rir alto. Quase caí da cadeira quando ela me falou: "Você parece um papagaio aí na minha frente dando um monte de explicação que eu não pedi". Fiquei vermelho como um pimentão e tive uma ponta de raiva de novo. Muito menos por fazer papel de bufão do que pela indignação de ver alguém reagir com tamanha indiferença a um assunto tão grave.
Mas, como se diz no futebol, "Cada um, cada um" (sem o verbo mesmo). Ou como diz o verborrágico Caetano Veloso, num insight feliz: "De perto ninguém é normal".

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